Mafalda Santos
21 DE JANEIRO A 10 DE MARÇO - Galeria Presença
Rua Miguel Bombarda, 570
4050-379 Porto
"On Revolution
Hannah Arendt, no livro On Revolution (1963) que Mafalda Santos cita no título desta exposição, discorre brevemente sobre a evolução do campo semântico do vocábulo revolução. Do latim, revolutio, a palavra surge primeiro nos nossos vocabulários para identificar inevitabilidades cíclicas (como as estações do ano), um retorno a uma ordem preestabelecida. Embora não corresponda completamente à verdade, é aceite por Hannah Arendt que é em 1789, durante a Revolução Francesa, que a palavra adquire o significado que hoje lhe atribuímos. Surge para separar os movimentos sociais de então do epíteto de revoltados.
Muitas vezes de forma insuspeita, em torno das palavras desenha-se um prodigioso campo de batalha, a tensão entre significado e significante objecto das mais violentas disputas. Desde o ano de 1789 que revolução – em todas as línguas – é um dos campos onde a luta se tem destacado pela intensidade, marcando todas as gerações até à contemporaneidade. Por norma, quem tem o domínio da palavra define a direcção política que reconhecemos como progressista. Hoje, por razões diversificadas, entre as quais a tautologia terá algum peso, sentimos o vocábulo armadilhado. Habitando sociedades relativamente estáveis, a palavra foi assimilada por linguagens mais quotidianas e não é invulgar vê-la aplicada a tecnologia, produtos banais e às ideias mais corriqueiras. No entanto, quando empregue na descrição de movimentos sociais em países exteriores às nossas democracias capitalistas, como hoje os países do Norte de África e Médio Oriente, continua a ter a força com que surgiu há duzentos e vinte anos.
Num exercício de memória histórica, Mafalda Santos regista os principais momentos revolucionários desde a primeira revolução, aquela que ainda hoje e de forma largamenteconsensual define a direcção do progresso civilizacional (por exemplo através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, à qual devemos a Declaração Universal dos Direitos da Humanidade adoptada pela ONU em 1948). Excluindo o ano de 1776, data da Declaração da Independência dos Estados Unidos – a Revolução Americana, a artista põe peso na narrativa que nos é oferecida por Hannah Arendt sobre a origem do valor da palavra, interessando-se especialmente pelo momento em que, deixando de significar retorno passa a confundir-se com progresso. É interessante que, apesar da mudança radical na percepção que temos da palavra, nesta transferência opera discretamente uma ideologia que importa do significado original a ideia de inevitabilidade. Presente em quase todos os discursos políticos, esta ideia pretende ser uma fonte de legitimação. Tal como hoje são ditas inelutáveis as medidas draconianas que nos são impostas pelo nosso governo, as revoluções são quase sempre apresentadas como momentos incorporados numa mitologia da história que as predestina como fatalidade.
A relação singular entre este vocábulo e o seu termo espelha-se na configuração das peças presentes na exposição: a tensão entre a paisagem e o mapa, entre a aspereza das linhas verticais e a docilidade das curvas. As formas de organização, catalogação e cartografia do conhecimento (neste caso histórico) transportam em si ideologias e a escolha entre um e outro tem sempre um peso que é necessário dizer político. Não iremos tão longe ao ponto de dizer que o meio é a mensagem, mas todos os signos têm, a diferentes níveis, campos semânticos preferenciais e de forma mais ou menos óbvia transportam em si ideias que conformam o uso que fazemos deles. Após um ano marcado por movimentos que optaram por identificar-se como indignados, é bom pensarmos, tendo sempre em conta que elas mudam, no que querem afinal dizer as palavras que utilizamos.
José Roseira