29/03/2007

Pessoas como nós


Quarenta e sete pessoas. Como nós: carne, osso, sentimentos, projectos, amigos, família. Mais de vinte crianças, que andam na escola, brincam com os bonecos, jogam à bola, andam de bicicleta, penduram-se às cavalitas, regressam ao fim da tarde ao lugar onde moram: como nós. Quarenta e sete pessoas que estão a dar uma lição de dignidade a quem acaba de lhes destruir o lugar onde habitavam há décadas sem lhes garantir um novo sítio para morar. O caso da comunidade cigana de Bacelo, no Porto, mostra ainda mais do que parece sobre o mundo em que vivemos e sobretudo sobre quem governa o país e a cidade. Mostra a violência sobre os mais pobres, o desprezo pela sua vida, o autoritarismo de Rio, a falta de cuidado da segurança social, o racismo instalado, a força dos interesses económicos contra quem tem apenas a dignidade para lhes resistir.

Rui Rio sabe exactamente o que faz: usa o argumento do perigo de saúde pública para "limpar" um terreno importante para o Grupo Pestana, que quer construir ali perto um hotel. Destrói as barracas sem garantir nenhuma solução, empurrando para as mãos da segurança social a resolução de um problema cuja responsabilidade política é apenas da Câmara Municipal do Porto, a quem compete arranjar habitação. Se Rui Rio quisesse realojar aquela gente, teria desde o início providenciado uma solução: se houvesse casas, por que teriam as pessoas de ir provisoriamente para pensões em lugar de saírem dali directamente de chave na mão para o seu novo bairro? E por que recusaria tão veementemente a Câmara o terreno disponível para os acolher, na freguesia onde sempre moraram, que a segurança social se comprometeu a financiar, e que assegurava que a comunidade poderia ter um sítio onde ficar durante o dia, onde cozinhar, onde manter as carrinhas com os seus bens, perto da escola das crianças? A segurança social pouparia dinheiro (o terreno até sai bem mais barato que as pensões ao erário público), a comunidade tinha uma solução do seu agrado, os laços de sociabilidade mantinham-se, o padrão cultural das pessoas seria respeitado. Mas Rui Rio não quer – e sabe o que faz.

Colocar as pessoas 60 dias em pensões que, muitas vezes, têm más condições, onde as pessoas se sentem mal, contra a sua vontade é a estratégia da Câmara para forçar o desgaste das famílias de modo a que elas acabem por preferir a rua ou as carrinhas. É disso que Rui Rio precisa: quando isso acontecer, Rui Rio lembrará que a condição sine qua non para o realojamento era a permanência nas pensões. Se as pessoas as abandonaram era porque tinham alternativas, ou seja, não precisam de casa. Lava assim a Câmara as mãos: limpou o terreno, atirou as famílias para a segurança social e terá arranjado um pretexto para não as realojar. Esta Câmara não é só violenta e autoritária, mas profundamente cínica.

É nestes momentos que se mede a solidariedade. Ela tem de estender-se a todos quantos são sensíveis aos direitos humanos. E tem de ser paciente e persistente: ela é precisa hoje, amanhã, e sobretudo daqui a 58 dias, quando for a altura de ver se esta cidade é capaz de exigir o mínimo dos mínimos: o respeito pelos outros, pela palavra e por um artigo básico da Constituição da República, artigo 65, direito à habitação.


josé soeiro

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