(Livraria Pinto dos Santos)
Rua de Santo António, 137
Guimarães
21 de Julho 2012 às 18h
com a presença da autora
e de António Preto, director da colecção
edição
Pé de Mosca
Resgate, de Isabel Carvalho
É possível que já alguém se tenha lembrado de dizer que se a política se faz na praça pública, a história se confecciona em casa. Sequestradas por pai ou marido no recatado território da casa, foi entre as panelas e a costura que as mulheres congeminaram o segredo. Elas sabem, desde sempre, que não há história sem sigilo, nem silêncio sem palavras. Ouvi uma vez a um padre, num casamento, que a casa é o trono a partir do qual a mulher governa o mundo. Quase sempre filhos de mães dominadoras, os padres pouco sabem de mulheres e alguns deles chegam mesmo a convencer-se de que Eva era santa. Eles leram algures que o anjo Gabriel, descido à terra, encontrou Zacarias no templo e a Virgem Maria em casa, lendo Isaías. Os anjos não têm sexo, mas sabem distinguir bem o espaço público do espaço doméstico. Perdida em leituras, a Virgem foi talvez a primeira Bovary de que há memória, e a história que ela engendrou ainda perdura: foi a mulher que inventou o homem, mas foi o homem que disse como havia de ser inventado. Porque assim se fez, é uma questão sem resposta. Sabe-se apenas, depois de Hanna Arendt, que a vida, a acção e o pensamento só são humanos na medida em que possam ser contados, partilhados com outros para que eles completem a narrativa recorrendo às suas próprias memórias, fazendo da história uma revelação do “como”. A vida é, por certo, uma narrativa, mas isto nada esclarece da primeira pessoa do plural que atravessa todos os textos de Isabel Carvalho. Quem é esse estranho “nós”, de onde vem e como se formou, ninguém sabe. Resgate é o título de uma operação de salvamento que toma a forma de uma lista de objectos familiares, inventário de uma herança que é também uma colecção de aforismos. Direi mesmo um breviário ou livro de orações para todas as horas do dia. Este teatro de objectos de uso comum, que fazem o espaço e o tempo da casa num triplo movimento – de dentro para fora, de ontem para hoje, do singular para o plural (uno, duplo, múltiplo) –, redesenha uma cartografia do privado e do público para melhor aferir os seus limites. Emanação e projecção são os interlocutores do diálogo que define os objectos. Para perceber o que distingue e aproxima um bengaleiro dum bidé não basta olhar para os objectos, é preciso compreender que estes carregam com eles uma longa história de comércios, usos e penhoras, que se intersectam entre a decoração, a linguagem e a política. O propósito de Isabel Carvalho é, por isso, muito simples: de mulher para mulher, trata-se de olhar olhos nos olhos para a Europa dentro de casa. Uma casa que precisa de ser arejada, um resgate que é a construção da narrativa e uma interrogação: qual a linguagem das mulheres?
António Preto
“Como pode ser a Europa resgatada?”, perguntei-me.
Delirar outra Europa como processo – ritual de passagem – para afirmar um desejo de resgate individual, mas inevitavelmente integrado nas comunidades a que cada um pertence: da comunidade a dois à comunidade dos “membros” europeus que formam o “corpo” da Europa. A quantas comunidades pertencemos em simultâneo? À dos que vivem e que morrem, dos que produzem e que consomem, dos que se reproduzem, dos que crêem e dos incrédulos, dos que se embriagam e dos que são abstémios, etc.
Este livro situa o delírio no espaço doméstico – no centro da batalha entre o encerramento e a abertura entre o mofado e o arejado, entre o isolamento e a comunhão – que nos objectos dispostos encontra referências para se expandir.
A narrativa concretiza o delírio transformando-o em memória.
A narrativa parte da decoração e não é ela (decoração) enquanto arranjo, composição, disposição de objectos e do que eles significam também insistência em fazer memória e, através dela, construir identidade?
Isabel Carvalho